“Esta peça é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo; e não apenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste país, melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver que me permitiu, sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca. “     Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1956

 

TEXTO DE VINICIUS DE MORAES

Poucas histórias terão excitado mais o espírito criador dos artistas que o mito grego de Orfeu, o divino músico da Trácia, cuja lira tinha o poder de tocar o coração dos bichos e criar nos seres a doçura e o apaziguamento. Esse sentimento da integração total do homem com a sua arte, num mundo de beleza e harmonia, - que artista não o traz dentro de si, confundido com o próprio impulso que o move para a criação?

Foi por volta de 1942 que eu, uma noite, depois de reler o mito numa velha mitologia grega, senti subitamente nele a estrutura de uma tragédia negra carioca. A lenda do artista que conseguiu, graças ao fascínio de sua música, descer aos infernos para buscar Eurídice, sua bem-amada morta e que, ao perdê-la em definitivo e com ela o gosto de criar e de viver, desencadeou em torno de si a desarmonia, o desespero de que seria ele a primeira vítima, - essa lenda poderia perfeitamente passar-se num ambiente como o de uma favela carioca, sublimados, é claro, os seus elementos naturais de modo a atingir a elevação do mito.

Em 1953, instado por meu amigo, o poeta João Cabral de Melo Neto, mandei a peça para o concurso de teatro do IV Centenário de São Paulo, havendo o júri por bem honrá-la com uma premiação

Quando em Maio de 1956, através de um milagroso conjunto de circunstâncias, um amigo propôs-me financiar a peça exatamente 24 horas antes de eu tomar meu avião para Paris, onde me encontro em posto, um dos problemas mais sérios que me coube resolver foi a escolha do músico, de um compositor que pudesse criar para o Orfeu Negro uma música que tivesse a elevação do mito, uma música que unisse a Grécia clássica ao morro carioca, uma música que reunisse o erudito e o popular - uma música “poética” que, mesmo servindo ao texto, tivesse uma qualidade órfica. Numa conversa com meus amigos Lúcio Rangel e Haroldo Barbosa foi-me ponderado o nome do jovem maestro e compositor Antônio Carlos Jobim, com quem eu de raro em raro privara em 1953, nas noites do finado Clube da Chave. Achei a idéia excelente e puz-me imediatamente em contato com Tom, como é popularmente conhecido, resultando daí não apenas uma parceria, mas uma amizade que hoje sinto de grande importância para nós ambos. Com a idéia de se criar uma ouverture para grande orquestra, que apresentasse os temas principais das personagens de maneira a colocar o espectador, ao abrir do pano, no ambiente emocional da peça, entreguei a Antônio Carlos Jobim a minha valsa “Eurídice”, composta em Estrasburgo, e que desde então passou a representar para mim o tema romântico de Eurídice no espaço musical da imaginação de Orfeu. Confesso que a excelência do trabalho que me foi sendo pouco a pouco apresentado pelo compositor, excedeu todas as minhas expectativas. Usando com grande habilidade elementos dos modos e cadências plagais que criam uma ambiência grega perceptível a qualquer pessoa, Antônio Carlos Jobim partiu realmente da Grécia para o morro carioca num desenvolvimento extremamente homogêneo de temas e situações melódico-dramáticas, fazendo, no final, quando a cena abre, o samba romper sobre o morro onde se deve processar a tragédia de Orfeu. Os sambas criados especialmente para a peça, de parceria nossa, constituíram sem dúvida a parte mais agradável do nosso trabalho. Ao conhecedor de música não escapará na estrutura melódico-harmônica dos mesmos o aproveitamento dessas mesmas cadências plagais de que falei, e que combinam, a meu vêr, maravilhosamente bem com o ritmo negro brasileiro. Esses sambas são, do ponto de vista da peça, as criações populares do sambista Orfeu da Conceição e funcionam de maneira dramática predeterminada comentando a ação e acrescentando-lhe os elementos sem os quais a tragédia não funcionaria: os elementos da música harmonizadora e destruidora que constituiu o privilégio do divino tocador de lira da antiga Trácia.



Soneto do Orfeu

São demais os perigos dessa vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar, que atua desvairado
Vem unir-se uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher
Uma mulher que é feita de música,
Luar e sentimento, e que a vida
Não quer, de tão perfeita
Uma mulher que é

como a própria lua:

Tão linda que só espalha sofrimento,

Tão cheia de pudor que vive nua.

Vinícius de Moraes