Por que montar Orfeu?


Espantei-me  com a pergunta de uma editora de cultura, por que montar Orfeu? Depois, convivi com ela ao longo do processo de produção, em toda entrevista lá estava a pergunta que não quer calar: por que montar Orfeu?

Montar Orfeu tem sido uma sucessão de alegrias e perplexidades. Circular com uma peça que é uma homenagem ao negro brasileiro e tem como rubrica do autor a indicação de um elenco negro no mínimo é muito original para os padrões ainda vigentes entre nós.  Sentia-me retirando da cristaleira da cultura nacional uma de suas obras mais importantes ou metaforicamente extraindo o pré-sal cultural, riqueza negra há muito enterrada. Por que montar Orfeu?

Desde sua estreia em 1956 a peça nunca esteve em circuito apesar de premiada e cultuada. O texto de Cacá Diegues narrando o impacto que teve ainda jovem acompanhado de seu pai no Theatro Municipal ao ver a peça já justificaria o interesse, mas a autobiografia do recente presidente americano Barack Obama expressando a influência decisiva em sua história do filme adaptado da obra de Vinicius, consolidou o desejo. Um misto de curiosidade e urgência transformou em exigência a empreitada, Miucha foi quem melhor definiu: ” você  está encantado por Orfeu, ele é o mito do encantamento.”

Descobri texto de pós graduação da USP sobre Orfeu e mais tarde da Sorbonne. Tive acesso aos originais da época que saudaram a peça como um marco cultural no Brasil. Li que Jorge Amado observou : ““É um dos pontos altos da obra poética de Vinicius, e a música, toda ela é excelente”. Mas por que montar Orfeu?

Ninguém que eu conheço diretamente viu o espetáculo. Suzana de Moraes, a filha do poeta, assim como Cacá Diegues, comentou que estiveram  lá no Municipal na célebre série de seis récitas do evento. Emocionei-me depois por saber de Jaques Morelenbaum que seu pai estava entre os músicos na efeméride. Entendi nesse momento o motivo de sua empolgação ao ser convidado para partilhar a direção musical por sugestão de Gilberto Gil.

Orfeu determina uma virada na história da música popular, ainda que a peça só tenha ficado em cartaz em 1956 por dez dias no Theatro Municipal. Diversos ingredientes já anunciam o surgimento do novo gênero musical, a bossa nova, tais como a utilização de harmonias cromáticas e dissonantes, a articulação entre a música e a poesia e o lugar reservado ao violão no conjunto instrumental. Na ouverture ele sola a valsa de Eurídice, tema romântico da peça, e no decorrer da peça sola também introduções dos sambas e os tristes acordes com que Orfeu procura manifestar a dor e os conflitos que lhe vão no íntimo. O violão de Bonfá em nossa montagem é de Jaime Alem que co-dirige o musical. Por que montar Orfeu?

O mistério da ausência de Orfeu nos palcos brasileiros por mais de cinquenta anos não se resolve apenas com sua adaptação para o cinema. O primeiro filme de 59 conquistou todos os prêmios, foi responsável também pela apresentação internacional da nova música brasileira revelando ao público estrangeiro Tom Jobim, Vinicius , Bonfá e um Novo Mundo sonoro que diversos músicos franceses e americanos fascinados, gravam e evocam. A consagração no Festival de Cannes e no Oscar  marcam o ponto de partida da expansão da música brasileira pelo mundo.  Prenúncio da bossa nova, Orfeu Negro traça um triângulo musical inédito entre a França, o Brasil e a costa oeste dos Estados Unidos. O filme foi também denunciado em nome da autenticidade da própria cultura brasileira.  Análises mais modernas repensam o filme nas relações interculturais entre Brasil, França e Estados Unidos. Apesar das críticas formais e ideológicas, o filme constitui um documento de primeira ordem para o estudo da paisagem cultural carioca e da história das transferências culturais. As críticas da época comparam a mediocridade do filme com a criatividade da peça, obra original, esta sim considerada verdadeiramente brasileira. Cacá Diegues nos fins dos anos 90 lançou sua versão e disse: “ O filme Orfeu Negro enveredava por uma visão exótica e turística  da cidade, o que traía o sentido da peça e passava muito longe das suas fundadoras e fundamentais qualidades…”

Mas por que montar Orfeu?

Uma curiosidade na escolha do elenco. No filme de 59, o diretor Camus teve um cuidado especial  e privilegiou atores não profissionais que deveriam possuir  a inocência dos iniciantes e se distinguir pela beleza singular. Publicou retratos falados de Orfeu e Eurídice no jornal O Globo da época procurando “um rapaz negro de 27 anos medindo 1,75 e 1,80. E uma jovem negra de 20 anos.” Agora em nossa peça, por outros caminhos parece que cumprimos o ideal do cineasta, os baianos Brás e Aline corresponderiam aos critérios de sua seleção.  Na peça de Vinicius a presença do Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento foi a base do elenco. Cumprimos em ato a cerimônia de benção ao visitar o baluarte negro em seu Instituto que consagrou ainda no período de ensaios nossa montagem.

Acho que temos muitos motivos para encenar Orfeu.


Gil Lopes

19 setembro 2010.