Miúcha

Texto por Ruy Castro


   Nome: Heloisa Maria Buarque de Hollanda

   Nascimento: Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1937

   Instrumento: voz, violão, flauta

   Epíteto: Maninha


A voz secreta


A voz feminina que fazia contracanto – sem crédito – para João Gilberto em “Isaura”, quando ele a cantou pela primeira vez em seu disco de 1975, gravado em Nova York e intitulado João Gilberto, pegou todo mundo de surpresa. De quem era? Nenhum indício na capa, na contracapa ou no selo do LP. O mistério aumentou no ano seguinte, quando a mesma voz feminina ressurgiu no disco The Best of Two Worlds, também gravado em Nova York, em que João Gilberto divide o microfone com o saxofonista Stan Getz. Mas a divisão deveria ser por três porque, neste disco, a mesma voz feminina fazia quatro importantes participações, duas das quais em perfeito inglês – não o inglês fonético, típico de tantas cantoras brasileiras. Para começar, a voz abria gloriosamente o disco, cantando “Double Rainbow”, versão internacional de “Chovendo na Roseira”, de Tom Jobim. E também o fechava, com um pessoalíssimo “Just One of Those Things”, de Cole Porter. Pois, com tudo isso, a moça aparecia até na capa, ao lado de João e Getz, toda bonita e sorridente – e, mais uma vez, sem crédito.

Mas, se a intenção era fazer dela o segredo mais bem guardado da bossa nova, eles fracassaram, porque seus amigos de Ipanema logo a identificaram. Era Miúcha, mulher do próprio João Gilberto, irmã mais velha de Chico Buarque e filha do historiador Sergio Buarque de Hollanda. Ah, bom, então estava explicado. Finalmente, em outro excepcional disco da mesma época, Urubu, de Tom Jobim, a voz fazia um dueto de gêmeos siameses com Tom na primeira faixa, “O Boto”. Só que, desta vez, sucintamente creditada: “Vocal por Miúcha”.

Isso foi em meados dos anos 70. Corte para hoje -- algumas décadas depois –, e é possível que, em muitos círculos, Miúcha seja agora mais conhecida como a mãe de Bebel Gilberto, sua filha com João Gilberto. Nenhum problema nisso, eu diria, desde que não se ignore a carreira que Miúcha construiu ao deixar o marido para trás, em Nova York, e voltar para o Brasil, logo depois de suas primeiras intervenções secretas nos discos dele. Desde então, habituamo-nos a conviver com ela, quase sempre associada a Tom Jobim, com quem gravou dois fabulosos LPs – resumidos no CD que acompanha este livro – e com quem estrelou um memorável show no Canecão, em 1977, ao lado também de Vinicius de Moraes e Toquinho. E, naturalmente, associada ainda a Chico Buarque e ao próprio João Gilberto, dois ilustres convidados de seus discos.

Uma carreira extraordinária, mesmo que fosse por um único motivo: é uma carreira voltada para a qualidade. Miúcha só grava o que gosta, o que quer, o que escolhe, e tem poder para isso – poder que não lhe foi dado por ninguém, mas por sua inteligência, cultura e independência. Se não puder fazer um disco em que acredite faixa por faixa, prefere ficar sem fazer – como aconteceu quando, depois do ótimo Miúcha, na RCA Victor, em 1980, só voltou a gravar dali a nove anos, em 1989, pela Warner. Pelo mesmo motivo, passou os dez anos seguintes também em branco, até 1999, quando fez Rosa Amarela, na BMG, porque os japoneses lhe deram condições para isso. Não é por acaso que os anos 80 e 90 tenham sido de bruma e fuligem na música popular brasileira – e olhe que, em matéria de repertório, nenhuma cantora brasileira tinha acesso tão direto à obra de Vinicius, Tom, Chico e outros que tais.

Mas, de 2002 para cá, ficou diferente. Contratada pela Biscoito Fino, Miúcha já bateu todos os seus recordes: nesses seis anos, soltou três CDs, cada qual melhor. Assim é que é bom. Disco novo de Miúcha na praça é uma garantia de oxigênio na paisagem.  



Com a Turma do Funil



O que tem Miúcha para que os maiores nomes da música adorem dividir seus palcos e microfones com ela? Chico Buarque não vale – afinal, é seu irmão. Nem todo irmão é assim, mas é notável a constância com que os dois estão juntos nos mesmos discos ou como ele a municia de canções, uma das quais, “Maninha”, de 1977, a pedido do produtor Aloysio de Oliveira, parecia uma mini-biografia deles em criança. (Na verdade, não era. A jaqueira de que fala a letra nunca existiu na casa dos Buarque de Hollanda, em São Paulo. E os “passos no porão” não eram de meter medo, porque também não havia porão.) Mas a canção é mais do que o retrato de uma época – duas crianças assoladas por metáforas que remetiam à ditadura militar, sendo o “ele” da letra, o general Ernesto Geisel. “Maninha”, graças também à interpretação de Miúcha, ficará como uma memória infantil de todas as épocas.

Quanto a João Gilberto, sua relação discográfica com Miúcha nunca ligou para as convenções do casamento ou divórcio. Quando ele a convidou a participar da primeira gravação de “Isaura”, em 1975, já estavam quase separados. Mas seu arranjo para o samba de Herivelto Martins pedia a presença de uma voz feminina, e nenhuma podia ser melhor que a de Miúcha. Já no caso de The Best of Two Worlds, com Stan Getz, o produtor Teo Macero nitidamente quis repetir com Miúcha a façanha de seu colega Creed Taylor ao criar o fenômeno Astrud Gilberto. E por que não? Em The Best of Two Worlds, as condições eram ainda melhores do que na gravação de Getz/Gilberto, o disco que, quatorze anos antes, consagrara Astrud com “The Girl from Ipanema”.  

Ali estavam os dois protagonistas do disco original, João Gilberto e Stan Getz; de novo, uma grande canção de Jobim, “Double Rainbow” – aliás, com letra em inglês muito melhor que a de Gene Lees para “Garota de Ipanema”; e a diferença, para melhor, é que, agora, tinham uma cantora completa, afinadíssima, de grande personalidade e com absoluto domínio do inglês: Miúcha – que, logo ao entrar na canção, já revelava a sua autoridade artística. Mas nada demais aconteceu com “Double Rainbow” nos Estados Unidos. Tornou-se um standard, como muitas outras canções de Tom, mas, decididamente, não se transformou numa nova “Girl from Ipanema”.

Um dos motivos foi o hit parade americano: em 1976, ele já não era tão receptivo à qualidade quanto em 1963/1964. E, mesmo que ainda fosse, Teo Macero não poderia fazer alarde da  participação de Miúcha no disco – um contrato que ela assinara com a Philips brasileira em 1972, para a gravação de um compacto duplo, proibia que seu nome saísse nesse produto da CBS. O curioso é que voz na gravação e foto na capa, tudo bem – mas o nome, não. E assim se esclarece o mistério da ausência de créditos para Miúcha naqueles discos. Anos depois, em 1980, com os dois já divorciados, mas sempre amigos, João Gilberto retribuiu tocando violão no disco de Miúcha na RCA, em duas faixas: a americana “All of Me”, de Gerald Marks e Seymour Simons (mas na versão brasileira de Haroldo Barbosa, “Ai de Mim”, que João costumava cantar em 1950 com o conjunto vocal Garotos da Lua), e “O Que É, O Que É”, de seu velho amigo, o veteraníssimo Bororó, em parceria com Evagrio Lopes.

Entre Miúcha e Tom Jobim, foi um caso de admiração e entrega mútuas e à vista. Os dois se conheceram em Nova York no começo dos anos 70, quando Miúcha ainda era casada com João Gilberto. Já no Rio, Tom a atraiu para sua turma – o executivo de banco Dico Vanderlei, os atores Hugo Carvana, José Lewgoy e Antonio Pedro, os jornalistas Tarso de Castro e Carlinhos Oliveira, o economista Ronald (Roniquito) Chevalier e outros –, que passava o dia no botequim Veloso (já Garota de Ipanema) ou na churrascaria Carreta, ambos em Ipanema. Miúcha era como se fosse “um dos rapazes”. Todos eram bons de copo, mas Miúcha não ficava nem um chope para trás. Foi Tom, inclusive, quem a fez gostar de seu apelido Miúcha, dado pelos pais dela – algo a ver com uma “miúda” (ela era muita pequena em bebê) irrequieta e que se “mexia” muito. Até então, Miúcha achava aquele nome mais adequado para cachorro, mas Tom a convenceu de que ele era gostoso, fácil de guardar e ficava bem numa capa de disco.

A empatia entre eles era tanta que, convidado a participar de uma ou duas faixas num disco de Miúcha que Aloysio de Oliveira estava produzindo na RCA Victor, Tom foi ao estúdio, acabou se encarregando de todos os arranjos, sugeriu músicas e cantou na maioria delas, de tal forma que o produto final teve de chamar-se Miúcha & Antonio Carlos Jobim. Pouco antes, Tom acabara de separar-se de Tereza (um casamento de quase trinta anos) e, depois de uma breve fase de esbórnia – na verdade, a única que teve na vida –, conhecera e se apaixonara pela estudante Ana Beatriz, 19 anos contra os seus 48. E que ele ainda não sabia, mas seria sua segunda e definitiva esposa.

Foi uma fase intensa na vida de Tom, com Miúcha de escudeira, tanto para o trabalho quanto para a maratona de libações – as quais, magicamente, não pareciam influir no rendimento musical. Durante sete meses, por exemplo, eles cumpriram a longa temporada do show Tom, Vinicius, Toquinho e Miúcha no Canecão, que se prolongou por outros três meses em São Paulo, Buenos Aires, Paris, Londres, Milão e Lugano, na Suíça (onde ele foi gravado pela TV local), sem que ninguém perdesse um espetáculo ou um avião. O show rendeu também um disco ao vivo pela Som Livre, e tudo isso emendou com mais um disco na RCA, Miúcha & Tom Jobim, este contendo uma versão de “Turma do Funil”, velha marchinha de Mirabeau, adaptada por Tom e Chico Buarque para o frenético dia-a-dia que eles agora levavam nos botequins do Baixo Leblon.

“Turma do Funil”, na verdade, foi a única faixa gravada no Rio – e, pela euforia dos participantes (Miúcha, Tom, Chico, João Donato), nota-se... Todas as demais foram feitas em Nova York, onde Tom e Miúcha tinham compromissos. Um dos pontos altos era a toada “Dinheiro em Penca”, que Tom começou a expandir a partir de uma letra do jovem poeta Cacaso e não conseguia parar de escrever. Por carta ou telefone, Cacaso juntou-se à brincadeira e, de repente, “Dinheiro em Penca” viu-se com quase vinte estrofes, para desespero do produtor Aloysio de Oliveira, fanático adepto de faixas de, no máximo, dois minutos e meio. Chico Buarque foi de avião para Nova York, a fim de juntar-se à gravação, e “Dinheiro em Penca” acabou resultando numa faixa de quase dez minutos! “Vocês estão loucos!”, bradava Aloysio. “Trocaram três faixas curtas, que poderiam tocar no rádio, por uma que nunca será tocada, nem pela metade!”.

“Dinheiro em Penca”, combinando os temas sertanejos das toadas com referências urbanas e sofisticadas, foi apelidada por Chico Buarque de “Jararaca e Ratinho no Central Park”. Num dos versos, Tom escreveu: “Uma vez em Nova York/ Liguei pro meu feiticeiro/ Que atendeu o telefone/ Lá no Rio de Janeiro”. Não era uma rima, mas uma solução. Esse feiticeiro existia no Rio e se chamava Lourival de Freitas, mais conhecido como Nero – porque costumava “receber” o antigo e aloprado imperador romano. Nero era um paranormal, perito em beberagens com plantas exóticas e cirurgias com canivetes e facas caseiras. Entre os clientes que se entregavam com total confiança a ele, nas altas e baixas rodas, estavam Tom, Vinicius e Chico Buarque. Tom convenceu Miúcha a deixar Nero operar seu joelho – um tombo afetara-lhe os ligamentos e agravara as seqüelas da pólio que Miúcha tivera em criança. A cirurgia foi na casa de Tom, então na rua Peri, e Nero pediu que Tom e Chico o assistissem como “anestesistas” – respectivamente, tocando piano e cantando durante toda a operação. Foi um sucesso: Miúcha nunca mais sofreu com esse joelho.

Pensando bem, uma turma com tal intimidade com os espíritos – tanto os do álcool como os propriamente ditos – tinha mais é de não se desgrudar, mesmo.


Passando o chapéu


Exceto por seu irmão Chico, o personagem mais antigo na vida de Miúcha era Vinicius – desde cedo, muito antes que alguém sequer pensasse em bossa nova. Os pais de Miúcha, o paulistano Sergio e a carioca Maria Amélia, eram grandes amigos do poeta, e este os visitava em todas as cidades em que eles moraram: no Rio (onde os dois se conheceu, num Carnaval, casaram-se em 1936, e onde nasceu Miúcha), em São Paulo (para onde se mudaram em 1946, quando Sergio foi dirigir o Museu Paulista) e em Roma (onde Sergio foi lecionar literatura brasileira na Universidade de Roma, em 1953). Na volta, em 1955, os Buarque de Hollanda reinstalaram-se em São Paulo, numa casa da rua Buri, no Pacaembu, e Vinicius, sempre que no Brasil, ia vê-los, levando um violão – para alegria da menina Miúcha, por saber que a presença de Vinicius era motivo de cantoria em casa e que os dois se esbaldariam em memoráveis duetos de sambas e marchinhas.

Não que a família de Miúcha dependesse do poeta para isso. O velho Sergio Buarque (nem tão velho assim) era uma das pessoas mais musicais que Miúcha conheceria na vida: tocava de ouvido qualquer música ao piano a que fosse solicitado; era amigo (e ex-companheiro de farras) de Pixinguinha, Donga, João da Bahiana e Villa-Lobos; às vezes arriscava-se a compor alguma coisa, em parceria com um dos filhos; e saía pela casa cantando tarantelas italianas, tangos argentinos (“Adiós, muchachos”, ele cantava em alemão!) ou paródias (em latim!) de marchinhas de Carnaval. O austero autor de Raízes do Brasil, e um dos intelectuais mais respeitados do país, tinha esse lado galhofeiro, de que talvez muitos de seus pares nem desconfiassem.

Os filhos saíram a ele, e sempre houve mais de um violão em casa. O de Miúcha se chamava “Vinícius”, porque fora o poeta quem lhe ensinara as primeiras posições – na verdade, dera-lhe aulas completas, que ela depois repassaria a Chico. O de Ana, sua irmã caçula (a também futura cantora Ana de Hollanda), se chamava “Catupiry”, por seu pinho avermelhado lembrar as cores da embalagem do queijo. Entre os outros irmãos, havia ainda mais dois com grande vocação musical: o pequeno Chico e a menor ainda, Cristina. E, contrariando a vontade do pai – que gostava de ver os filhos cantando pela casa, mas proibira-os de sequer pensar numa carreira musical –, os quatro cumpriram justamente essa vocação.

Em 1958, quando saiu o 78 rpm de “Chega de Saudade”, com João Gilberto, o impacto foi imediato no casarão da rua Buri. Há uma querela de fundo histórico sobre quem teria comprado o disco na loja e levado para casa, se Miúcha ou Chico. O que se sabe é que ele foi comprado, não por ser um disco de João Gilberto, que ninguém ali conhecia, ou mesmo de Tom Jobim, mas por ser “um disco do Vinicius”, co-autor do samba. O fato é que, impressionados de saída por aquela batida de violão (“Era um disco-voador disparando sobre nossa cabeça”, ela diria), todos os violonistas da família dedicaram-se a tentar aprendê-la – e o primeiro a conseguir não foi Miúcha, mas Chico, mesmo que, para isso, às vezes tocasse “Chega de Saudade” (que era o lado A do 78 rpm) vinte vezes seguidas na vitrolinha Hi-Fi, para desespero dos demais moradores. Na verdade, eles demoraram a descobrir que havia outra música no lado B, o samba-baião “Bim-Bom”, de autoria do próprio João Gilberto.

Em 1960, aos 23 anos, Miúcha partiu com uma bolsa de estudos para Paris, a fim de estudar história da arte na Sorbonne e na École du Louvre. Fazia parte do currículo obrigatório das meninas bem educadas naquele tempo. Mas Miúcha já foi para lá “mal intencionada”, como ela própria contaria depois: levou seu violão e os poucos LPs de bossa nova lançados até então, dois dos quais de João Gilberto – sobre quem já fazia mirabolantes  fantasias, inclusive de casamento...

Miúcha foi morar de graça num apartamentinho de sua tia Gilda, em Auteil, bairro chique no 16ème, e tinha de se virar com uma mesada de US$ 80. Não era mau para uma estudante, mas nada que não pudesse ser incrementado por alguns trocados que recebia em certos bares parisienses freqüentados por latino-americanos, nos quais dava eventuais “canjas” tocando bossa nova. E seus pais nem desconfiavam, mas, às vezes, Miúcha e seu amigo Dudu do Banjo, que a acompanhava nas “canjas”, viajavam a passeio pela Europa e aproveitavam para se apresentar nas ruas e passar o chapéu. Numa dessas viagens, pela Itália, em meados de 1963, passaram por Roma e descobriram que, por acaso, João Gilberto tinha acabado de se apresentar por lá (com um quarteto que incluía João Donato, Tião Neto e Milton Banana). Seguiram viagem e constataram que a mesma coisa acontecera em Viareggio, no sul do país. Miúcha já se conformara com a idéia de que nunca conseguiria conhecer o homem, quanto mais casar-se com ele – quando, como sempre, o acaso fez das suas.

Uma das pequenas boates onde ela se apresentava em Paris era o La Candelária, na rua Monsieur Le Prince, em Saint-Germain des Prés, cujas principais atrações eram a cantora chilena Violeta Parra e o conjunto Los Incas. Violeta morava no andar de cima da própria boate. Certa noite, em fins daquele ano, um deles veio dizer a Miúcha que um brasileiro assistira à apresentação da “chica” e gostaria de falar com ela. Miúcha pôs-se logo em guarda porque, na última vez em que fora procurada por alguém depois do show, tratava-se de um suposto xeque que propunha levá-la para as Arábias, talvez com vistas ao tráfico de escravas brancas. Mas, como o homem se dissera brasileiro, ela pagou para ver. Foi até ele e, em meio à penumbra, não podia distinguir direito seus traços. E, mesmo que o visse bem, talvez não o reconhecesse, porque, até então, todos os brasileiros no exterior tinham cara de cachorro que cai do caminhão de mudança. Mas, dez minutos depois, concluiu que aquela voz era inconfundível: João Gilberto.

A criatividade extra-musical de João Gilberto revelou-se pouco depois para Miúcha, quando os dois foram convidados a entrar num automóvel apinhado, com Violeta e os vários incas, para esticarem em outros lugares pela noite. João sussurrou para Miúcha que ela se sentasse perto da porta no banco traseiro. Ele se sentaria perto da outra porta. No primeiro sinal vermelho em que o carro tivesse de parar, cada qual abriria sua porta e sairia correndo. Ela achou aquilo muito louco, mas uma pândega. Fizeram o que ele planejou e deu certo – atiraram-se para fora do carro, fugiram pela noite de Paris, deixando os outros perplexos, e, quando se deram conta, o namoro já tinha começado.


A aristocracia musical


Ironicamente, quem não gostou nada ao saber do namoro entre Miúcha e João Gilberto foi Vinicius de Moraes, que acabara de chegar à cidade com sua nova namorada, Nelita Abreu Rocha. E olhe que para tirar a quase adolescente (19 anos) Nelita do Rio, a fim de se casar com ela em Paris, o cinqüentão Vinicius tivera que praticamente seqüestrá-la, porque os pais da moça não o aceitavam... Mas, indiferente ao próprio caso, Vinicius insistia em se meter: por conhecer bem João Gilberto, o poeta não o achava adequado para namorar uma menina que ele só faltara ver crescer – e dedurou Miúcha ao pai dela. Em São Paulo, Sergio Buarque caiu das nuvens ao saber da história. Mas teve de render-se ao fato consumado, porque, por carta ou telefone, João Gilberto pôs em campo seus poderes de sedução e contou com a ajuda do escritor Jorge Amado, baiano como ele e também amigo de Sergio, para amaciar o futuro sogro. João Gilberto e Miúcha acabaram se fixando em Nova York, onde se casaram em 1965 (no civil e no religioso, por exigência da mãe dela) e tiveram sua filha Bebel, em 1966. Passaram lá boa parte dos anos seguintes, exceto por um interregno de dois anos no México, até que, sentindo a proximidade do fim do casamento, Miúcha voltou para o Brasil, tentativamente, em 1971. Mais alguns anos, instalou-se de vez no Rio – sempre em Ipanema – e só então retomou sua carreira, finalmente em bases um pouco mais regulares.

Regulares, mas não muito, porque, quem conhece Miúcha, custa a se convencer de que está diante de uma cantora profissional. Sua naturalidade no palco passa a impressão de que está apenas brincando de cantar, de que sua platéia, por mais lotada a casa noturna, é toda composta de amigos íntimos (e talvez seja mesmo). E há também sua postura na profissão: é elegante demais – além de calorosa, alegre e relaxada – para procurar o sucesso a todo custo ou fazer qualquer concessão em troca dele.

Mas que ninguém se engane. Miúcha é uma das profissionais mais respeitadas da praça. Quando entra no palco ou no estúdio, sem um minuto de atraso, traz todos os arranjos e letras na ponta da língua. Os músicos sabem que ela se joga por inteiro em cada canção e que explora essa canção em todas as suas nuances. É como se pertencer a uma espécie de aristocracia da música popular – composta no Brasil pelas famílias Jobim, Caymmi, de Moraes, Gilberto e, sem dúvida, de Hollanda – não a eximisse de suar o decote com o entusiasmo de uma principiante. E olhe que ela faz parte dessa aristocracia pelos dois lados: os Gilberto e os de Hollanda.

Deve haver um significado no fato de que, embora não procurasse isso, Miúcha já tenha sua voz ligada a pelo menos três clássicos brasileiros absolutos, como “Pela Luz dos Olhos Teus”, “Maninha” e “Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão)” – desde que ela os gravou, é difícil ouvi-los com outros intérpretes. E que tenha produzido o milagre de cantar um “Na Batucada da Vida” que rivaliza, nota por nota, com a versão até então insuperável desse samba: a de Carmen Miranda.

Se João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes querem dizer alguma coisa no cenário musical, deve haver também um significado no fato de que, embora muitas cantoras brasileiras se orgulhem de ter partilhado o microfone com um ou com dois deles, só uma tenha cantado com os três: Miúcha. 


Frases


A bossa nova é completamente fênix. Ela nos dá vontade de rir”.


Tom [Jobim] se aporrinhava com as coisas pequenas, com os problemas bobos. Fazia aquele gesto de quem espanta moscas invisíveis. Já as grandes questões ele tirava de letra”.


Cantar com o Tom era uma coisa linda. Ele dizia: ‘Durante a vida inteira, fui um acompanhador de cantoras. Comecei acompanhando a Doris Monteiro e gosto disso’” .


Depois de treze anos fora [em Roma, Paris, Nova York e Cidade do México], dos quais sete sem voltar ao Brasil, eu só podia morar em Ipanema”.


Era uma turma que pintava [no Veloso] na hora do almoço: Tom Jobim, Dico Wanderley, Ruy Guerra, Roniquito. Eu era chapinha, não uma mulher sedutora. O bar era uma coisa sagrada. Eu era a amigona”.


Ensinei o Chico [Buarque] a tocar violão”.


No Japão, nos permitem gravar discos de música absolutamente brasileira, e com uma liberdade que nem sempre temos aqui”.


Nunca gravei um disco em que eu não escolhesse todo o repertório. Tenho poucos discos, mas me orgulho de todos”.


Qualquer pensamento musical é bom e produtivo”.


Discografia



*Miúcha & Antonio Carlos Jobim. RCA Victor, 1977

*Tom/Vinicius/Toquinho/Miúcha – Gravado ao Vivo no Canecão. Som Livre, 1977

*Miúcha & Tom Jobim. RCA Victor, 1979

*Miúcha. RCA Victor, 1980

*Miúcha [com Pablo Milanés]. Warner/Continental, 1989

*Rosa Amarela. BMG Brasil, 1999

*Miúcha.Compositores. Biscoito Fino, 2002

*Miúcha Canta Vinicius & Vinicius – Música e Letra. Biscoito Fino, 2003

*Outros Sonhos. Biscoito Fino, 2007


Participações [selecionadas]


*João Gilberto [participação na faixa “Isaura”]. Polydor, 1974

*The Best of Two Worlds [com João Gilberto e Stan Getz] [participação nas faixas “Double Rainbow”, “Águas de Março”, “Isaura” e “Just One of Those Things”. Columbia, 1976

*Urubu [com Tom Jobim] [participação na faixa “Boto”]. Warner, 1976

*Saltimbancos [músicas da peça] [Miúcha interpreta a galinha]. Polygram, 1977

*Vivendo Vinicius ao Vivo [com Baden Powell, Carlos Lyra e Toquinho] [participação em nove faixas]. BMG Brasil, 1999


Bibliografia


CABRAL, Sergio. Antonio Carlos Jobim – Uma Biografia. Rio de Janeiro, Lumiar, 1997.

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

CEZIMBRA, Márcia, Tessy Callado e Tárik de Souza. Tons Sobre Tom. Rio de Janeiro, Editora Revan, 1995.

JOBIM, Helena. Antonio Carlos Jobim – Um Homem Iluminado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996.

WERNECK, Humberto (org.). Chico Buarque – Letra e Música. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.


        Letras


Turma do Funil

(Mirabeau-Milton Oliveira-Urgel de Castro/ adaptação: Antonio Carlos Jobim-Chico Buarque)


Quando é tão densa a fumaça
Que o tempo não passa
E a porta do bar já fechou
Quando ninguém mais tem dono
O garçom tá com sono
e a primeira edição circulou
Quando não há mais saudade, nem felicidade
Nem sede, nem nada, nem dor
Quando não tem mais cadeira
tomo uma besteira de pé no balcão
E eis que da porta do fundo
Do oco do mundo
Desponta o cordão

Chegou a turma do funil
Todo mundo bebe
Mas ninguém dorme no ponto
Ah, ah, ah!
Mas ninguém dorme no ponto
Nós é que bebemos
E eles que ficam tontos, morou?
Eu bebo sem compromisso
É o meu dinheiro
Ninguém tem nada com isso
Enquanto houver garrafa
Enquanto houver barril
Presente está a turma do funil.



Triste Alegria

(Miúcha)


Procuro um homem direito

Pra uma moça toda errada

Alguém que saiba dar jeito

Nessa mulher tão coitada

Que chora desesperada

Dentro do meu próprio espelho

Com o olho sempre vermelho

De quem já não enxerga nada

Procuro o erro no engano

Tudo certo e nada está

Me acordam seus soluços

Seus gemidos, pesadelos

Me agarro o braço aflito

De quem cai no precipício

E as coisas que ela grita

Me incomodam o coração

De dia dela me esqueço

Bebo chope, solto risos

Converso com os meus amigos

Um certo descanso eu mereço

Ela só vem de manhã

Ou na escura madrugada

Quase sempre embriagada

Quase nunca acompanhada

A não ser de uma triste alegria

Que ela chora em cantoria


Aula de Matemática

(Antonio Carlos Jobim-Marino Pinto)


Pra que dividir sem raciocinar
Na vida é sempre bom multiplicar
E por A mais B
Eu quero demonstrar
Que gosto imensamente de você
Por uma fração infinitesimal,
Você criou um caso de cálculo integral
E para resolver este problema
Eu tenho um teorema banal
Quando dois meios se encontram

Desaparece a fração
E se achamos a unidade
Está resolvida a questão
Pra finalizar, vamos recordar
Que menos por menos dá mais amor
Se vão as paralelas
Ao infinito se encontrar
Por que demoram tanto

Os corações a se integrar?
Se infinitamente, incomensuravelmente,
Eu estou perdidamente apaixonado por você.


Sublime Tortura

(Bororó)


Descobri em você
Um jeitinho maldoso
Que eu nem sei dizer
Com esses olhos que falam
Nas coisas que a gente não pode
Nem deve esquecer
Não falando da boca
Nervosa e aflita
Que nela deseja
Você é toda malícia
É toda carícia que afaga, que xinga, que beija
Eu só sei que se vê a sublime tortura do amor em você
Eu bem sei que você é bonita e me faz delirar
Pois acende a fogueira
Eu queira ou não queira me deixo queimar
Trago em meu coração
A mágoa e a desilusão
O destino é quem sabe ou não
Vivo pensando no mal
No que pode acontecer
Sei que você me despreza
E eu não posso mais sofrer
Ai, não, eu fiz tudo
Não posso esquecer
Você
Você
Você
Você
Você
Você...


Samba do Carioca

(Carlos Lyra-Vinicius de Moraes)


Vamos, carioca
Sai do teu sono devagar
O dia já vem vindo aí
O sol já vai raiar
São Jorge, teu padrinho
Te dê cana pra tomar
Xangô, teu pai, te dê
Muitas mulheres para amar
Vai o teu caminho
É tanto carinho para dar
Cuidando do teu benzinho
Que também vai te cuidar
Mas sempre morandinho
Em quem não tem com quem morar
Na base do sozinho não dá pé
Nunca vai dar
Vamos, minha gente
É hora da gente trabalhar
O dia já vem vindo aí
O sol já vai raiar
E a vida está contente
De poder continuar
E o tempo vai passando
Sem vontade de passar
Ê, vida tão boa
Só coisa boa pra pensar
Sem ter que pagar nada
Céu e terra, sol e mar
E ainda ter mulher
E ter o samba pra cantar
O samba que é o balanço
Da mulher que sabe amar.


Falando de Amor

(Antonio Carlos Jobim)


Se eu pudesse por um dia
Esse amor, essa alegria
Eu te juro, te daria
Se pudesse esse amor todo dia
Chega perto, vem sem medo
Chega mais meu coração
Vem ouvir esse segredo
Escondido num choro-canção
Se soubesses como eu gosto
Do teu cheiro, teu jeito de flor
Não negavas um beijinho
A quem anda perdido de amor
Chora flauta, chora pinho
Choro eu o teu cantor
Chora manso, bem baixinho
Nesse choro falando de amor
Quando passas, tão bonita
Nessa rua banhada de sol
Minha alma segue aflita
E eu me esqueço até do futebol
Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro-canção
Lá no fundo do meu coração.



Vai Levando

(Chico Buarque-Caetano Veloso)


Mesmo com toda a fama, com toda a brahma
Com toda a cama, com toda a lama
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa chama
Mesmo com todo o emblema, todo o problema
Todo o sistema, toda Ipanema
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa gema
Mesmo com o nada feito, com a sala escura
Com um nó no peito, com a cara dura
Não tem mais jeito, a gente não tem cura
Mesmo com o todavia, com todo dia
Com todo ia, todo não ia
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa guia
Mesmo com todo rock, com todo pop
Com todo estoque, com todo Ibope
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando esse toque
Mesmo com toda sanha, toda façanha
Toda picanha, toda campanha
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa manha
Mesmo com toda estima, com toda esgrima
Com todo clima, com tudo em cima
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa rima
Mesmo com toda cédula, com toda célula
Com toda súmula, com toda sílaba
A gente vai levando

A gente vai tocando
A gente vai tomando

A gente vai dourando essa píula!



Na batucada da Vida

(Ary Barroso-Luiz Peixoto)


No dia em que eu apareci no mundo

Juntou uma porção de vagabundo da orgia

De noite, teve samba e batucada

Que acabou de madrugada

Em grossa pancadaria

Depois do meu batismo de fumaça

Mamei um litro e meio de cachaça

Bem puxado

E fui adormecer como um despacho

Deitadinha no capacho na porta dos enjeitados

Cresci olhando a vida sem malícia

Quando um cabo de polícia

Despertou meu coração

E como eu fui pra ele muito boa

Me soltou na rua à toa

Desprezada como um cão

E hoje que eu sou mesmo da virada

E que topo qualquer parada

E por Deus fui esquecida

Irei cada vez mais me esmulambando

Seguirei sempre cantando

Na batucada da vida...



9. Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão)

(Toquinho-Vinicius de Moraes)


Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é por exemplo que dá pra entender
A gente mal nasce e começa a morrer
Depois da chegada vem sempre a partida
Porque não há nada sem separação
Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão
A gente nem sabe que males se apronta
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe
E o sol que desponta tem que anoitecer
De nada adianta ficar-se de fora
A hora do sim é o descuido do não
Sei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão.



10. Pela Luz dos Olhos Teus

(Vinicius de Moraes)


Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é, meu Deus
Que frio que me dá
O encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
Só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus
Me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus
Já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus
Sem mais larirurá
Pela luz dos olhos teus
Eu acho, meu amor
E só se pode achar
Que a luz dos olhos meus
Precisa se casar.


Samba do Avião

(Antonio Carlos Jobim)


Eparrê,
Aroeira beira de mar
Salve Deus e Tiago e Humaitá
Eta, costão de pedra dos home brabo do mar
Eh, Xangô, vê se me ajuda a chegar

Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudade
Rio, teu mar, praias sem fim
Rio, você foi feito pra mim
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Rio de sol, de céu, de mar
Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão
Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Aperte o cinto, vamos chegar
Água brilhando, olha a pista chegando
E vamos nós
Aterrar...



12. Dinheiro em Penca

(Antonio Carlos Jobim-Cacaso)


O mati é passo preto
Ele é muito tapereiro
Ele canta por amor
Eu só canto por dinheiro
No seu canto tem valor
No meu canto tem vintém
Ele geme a sua dor
Eu não choro por ninguém
Ninguém sabe ir pelo Catumbi
Ninguém sabe, ninguém sabe
Eu casei com ela
Fiz um filho nela
Bati muito nela
Fui feliz com ela
Se o santo cai do andor
E o barro cobre o ladrilho
Quem roubou o meu amor
E me escondeu do meu filho
Renda de filó
Carretel de linha
Jorro de cascata
Canja de galinha
Sino de Belém
Mofo de farinha
Vou cantar agora
Uma prenda minha
O mati ao meio-dia
Tá piando no soleiro
Ele canta na estia
Eu debaixo do chuveiro
Ele mora no sertão
Eu no Rio de Janeiro
Ninguém sabe ir por Andaraí
Ninguém sabe, ninguém sabe
Se o peito guarda rancor
O raio pisca o seu brilho
Do porto sai o vapor
Da vaca sai o novilho
Tem gente que faz favor
Pamonha é feita de milho
Quem roubou o meu amor
E me escondeu do meu filho
Fé de bisavó
Praga de madrinha
Laço de gravata
Bando de rolinha
Sorte de repente
Jura de modinha
Vou cantar agora
Uma prenda minha
Eu fui lá, na grota funda
Avisar meu feiticeiro
Fiquei bom do reumatismo
E ganhei muito dinheiro
Melhorei do meu cansaço
E ganhei muito dinheiro
Ninguém sabe ir pelo Buriti
Ninguém sabe, ninguém sabe
Se o cheiro muda de cor
O nego puxa o gatilho
A lucidez sai da dor
O trem de ferro do trilho
Se o vento liga o motor
E a morte presta um auxílio
Quem roubou o meu amor
E me escondeu do meu filho
Rede de cipó
Lata de sardinha
Porta de alçapão
Ceva de tainha
Bolha de sabão
Sopa de letrinha
Bucha de balão
Papo de cozinha
Meu padrinho quando moço
Era muito fazendeiro
Tirou outro do sertão
Foi gastar no estrangeiro
O dinheiro da boiada
Transferiu pro estrangeiro
Ninguém sabe ir pelo Piauí
Ninguém sabe, ninguém sabe
O avião salta do chão
O padre sai do retiro
O acaso faz o ladrão
Da espingarda parte o tiro
Do verso nasce a canção
Do sertão meu estribilho
Quem roubou o meu amor
E me escondeu do meu filho
Medo de ladrão
Noite de arrepio
Boca de fogão
Casco de navio
Pipa de papel
Bem-te-vi no cio
Corda de relógio
Bomba de pavio
Tive léguas e mais léguas
Muito gado, cafezais
Sesmarias, mata virgem
Onde a vista já não vai
Extensão de terra roxa
Ia até o Paraguai
Tive até um burro preto
Que vovó deu pro papai
Eu também já tive um tio
Que virou velho gaiteiro
Que gostava de mulher
Como eu gosto de dinheiro
Era louco por mulher
Eu me amarro no dinheiro
Fui mascate no sertão
Caminhei o norte inteiro
Vendi grampo a prestação
Guarda-chuva em fevereiro
Até hoje estou esperando
A remessa do dinheiro
O mati é passo preto
De janeiro até janeiro
Ele casa no verão
Eu namoro o ano inteiro
O mati já tem bisneto
Eu ainda tô solteiro
Ele voa em liberdade
Inda tô no cativeiro
E voou pra imensidão
Eu ainda prisioneiro
Canta curió
Canta coleirinho
Sabiá da mata
Garnizé de ninho
Terra de niguém
Viração marinha
Vou cantar agora uma prenda minha
Uma vez em Nova York
Liguei pro meu feiticeiro
Que atendeu o telefone
Lá no Rio de Janeiro
Eu então falei pra ele
Procurar meu macumbeiro
Pra avisar pro pai-de-santo
Pra arranjar algum dinheiro
Pra pedir pro delegado
Pra soltar meu curandeiro
Ao doutor seu delegado
Pra soltar meu curandeiro
Mas o tal telefonema
Lá se foi o meu dinheiro
Sunga de lagarto
Dente de galinha
Sovaco de cobra
Pena de tainha
Asa de tatu
Jura de Maria
Gritos de menino
Rabo de cotia.


Repertório do CD


1) Turma do funil (No Baixo Leblon) (Mirabeau/Milton Oliveira/Urgel de Castro – Adaptação: Tom Jobim/Chico Buarque)

Com Tom Jobim e Chico Buarque

(P) 1979


2) Triste alegria ( Miucha) -- Com Tom Jobim

(P) 1979


3) Aula de matemática (Tom Jobim/Marino Pinto) –

Com Tom Jobim

(P) 1979


4) Sublime tortura ( Bororó) -  Com Tom Jobim

(P) 1979


5) Samba do carioca (Carlos Lyra/Vinicius de Moraes) – Com Tom Jobim

(P) 1979


6) Falando de amor (Antonio Carlos Jobim)

Com Tom Jobim

(P) 1979


7) Vai levando (Chico Buarque/Caetano Veloso) –

Com Tom Jobim e Chico Buarque

(P) 1977


8) Na batucada da vida (Ary Barroso/Luiz Peixoto) – Com Tom Jobim

(P) 1977


9) Sei lá( A vida tem sempre razão) (Toquinho/vinicius de Moraes) – Com Tom Jobim e Chico Buarque

(P) 1977


10) Pela luz dos olhos teus(Vinicius de Moraes) –

Com Tom Jobim

(P) 1977


11) Samba do avião(Antonio Carlos Jobim) –

Com Tom Jobim

(P) 1977



12) Dinheiro em penca ( Antonio Carlos Jobim/ Cacaso) – Com Tom Jobim e Chico Buarque

(P) 1979